Até morrer solto no coração da liberdade

Certa manhã, o sonho intranquilo me despertou de um cataclismo desvairado. Alguma coisa não fazia mais sentido naquela orquestra estranha e familiar de cada dia. Não eram apenas as horas mortas, notas tortas ou a repetição de datas maquinais. Algo sem conserto e disforme se quebrou por completo. O fim de um ciclo que sequer havia dado as primeiras voltas. Não era como as armadilhas do passado, das quais jogava num verso sujo e seguia passos desconexos diante do escuro futuro incerto. Percebi que as harmonias, compassos e ritmos fugiram para nunca mais voltar. Via em uma foto em preto e branco os melhores anos de minha vida consumidos pelo desespero banalizado. O que me restaria daqui para frente?

Tomei um café forte e amargo para seguir, mesmo sem saber ao certo para onde iria ou se forças teria para manter o coração tranquilo e a mente quieta. O gosto da cafeína sem açúcar tinha se tornado a única companhia dos momentos mais improváveis. E eram tantos. Quedas de desfiladeiros que insistia em me dependurar. Vejo embaixo um precipício. É ali que vou bater? Não quero ver cenas se repetirem em minhas retinas incrédulas. Medo? Quem sabe? Preciso rever meu discurso contra a vida. A casa e a cabeça bagunçadas me indicavam os passos do derradeiro fim. Uma triste canção lentamente enchia o coração vazio de uma espécie de esperança ainda sem forma. Sabia que acabaria antes mesmo do último acorde. Era fatal.

Não percebi naquele instante, mas descia para o mais tenebroso labirinto sem volta. Não se tratava de dor recente ou passada; chagas mal curadas ou qualquer sensação que não se mede pelos calendários ou fitas métricas. Faltavam medidas, regras, luz, cor; tudo. Tudo que um dia fora capaz de afagar a dor e dissimular aquilo que escondia em anos de porções desmedidas de serotonina. A conta chegou sem deixar sequer um aviso. Sentia um revólver permanentemente apontado contra meu peito prestes a ser disparado. E seria eu quem puxaria o gatilho. Era questão de tempo. E tempo era tudo que não queria mais.

Os dias passavam velozes. E, no fundo, comemorava a forma como Chronos me devorava; já que Kairós me deixava desamparado. As cores e sons sumiram de minha vista. Preparava a cada novo dia a mesa vazia e a cabeça repleta de dúvidas atrozes. Será o fim do desencontro? Algum sonho perdido por aí? Essa paz inventada me custou litros de sanidade, que nunca tive e, acho, nunca terei. Faria alguma diferença?

Um Neruda sobre a mesa tentava recobrar a consciência perdida. Versos sobre o inverso que habitava minha pele. Não existiriam Drummond, Pessoa, Leminski ou Meireles capazes de me despertar do transe profundo. Guardarei minha poesia pequena com trapos, restos e melancolia que não consigo me livrar. Fazer as malas ou a barba tanto importa. Tudo remete ao cheiro de uns 30 anos atrás. Único desejo que nutro é tornar-me um acrobata insano a bailar entre abismo e decotes até morrer solto no coração da liberdade. Por enquanto, apenas caminho sobre cordas como se portasse medalhas, títulos, vaidades ou qualquer coisa que assim os valha.

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