“Descansado estava eu,
porém ele me quebrantou;
e pegou-me pela cerviz,
e me despedaçou;
também me pôs por seu alvo.”
Jó 16:12
I
Um dragão dorme em meu quarto. Mentira, nem um dragão conseguiria dividir o espaço comigo. Mesmo assim, insisto em dizer que um animal inexistente e que expele fogo pelas ventas dorme a meu lado. Não que isso me torne melhor, apenas me faz esquecer as dores passadas e ainda não cicatrizadas. Ele, o dragão, veio morar comigo depois de um dia tedioso de janeiro. Manhã sem sol e repleta de desilusões adormecidas. Caia uma chuva fina a molhar a alma ainda inerte de sentimentos contraditórios. Pessoas andavam apressadas e sem rumos pelas ruas cheias de automóveis e desamores. Achei-o, meio sem jeito, entre o meu desespero a sua desconfiança. Tive pena. Uma espécie de reconhecimento mútuo, parecia que nos conhecíamos de outras vidas, outras longas madrugadas de insônia dividida. Tínhamos gostos semelhantes e nos emocionávamos nos mesmos filmes, livros e poesias sem cores. Nele, pude ver em um espelho refletido meus maiores medos e pecados; sonhos e ilusões; afetos e carências. Tudo misturado. A diferença entre nós – além dele não existir – é que cospe fogo; eu apenas afasto as pessoas.
Trouxe-o. Não recusou nem ofereceu resistência. Seguia meus passos, cabisbaixos, pelas ruas vazias de sentimentos e iluminadas por outdoors. Seus passos tímidos eram abafados, apenas, pelo som de veículos que nos acompanhava. Em alguns instantes, o perdia de vista. Em outros, ele seguia à frente, como a me mostrar os caminhos rotos que deveria traçar. Meus planos contraditórios esperavam apenas cruzar com uma certa pessoa em um determinado local indefinido; tudo era disforme e confuso naquela época. Procurava a todo custo essas coisas que todos chamam de felicidade. Talvez a ilusão de um ser mitológico compartilhando meus devaneios mais secretos dar-me-ia forças para erguer a cabeça quando fosse forte a tormenta. Talvez, não…
Meses passaram na mais resoluta paz. Dias desses, ele estava sem ânimo, sem alegria. Apático, manteve-se semanas calado, em seu canto. Como a se aclimar no deserto que resumido no meu quarto ou coração? Não sei. O medo da solidão rondou-me, novamente, às portas da percepção. Entreguei-me às remotas chagas que cicatrizam lentamente meu peito. Procurava respirar fundo na inútil agonia de encarar as marcas de meu rosto no espelho.
Em um sábado em que voltava de lugar algum, meu dragão imaginário explodiu-se em cólera. O motivo, embora não soubesse, percebi ser comigo. Como era a única pessoa que me ouvia e fingia me compreender, procurei segurar suas patas e abraçar seu corpo desproporcionalmente maior que o meu. Recusou-me o corpo, virou-me a face. Disse que estava em um momento diferenciado e se recuperava de dores passadas. Pediu-me calma, paciência. Deu-me ordem para esquecer meus traumas, dores passadas e futuras. Aconselhou-me procurar analista, tomar calmantes ou antidepressivos. Não argumentei. Obedeci.
Como de costume, preferi o silêncio às palavras amargas. Em meu rosto alvo, tentei transmitir que acataria as ordens e daria um novo rumo aos passos contraditórios. Era minha insegurança novamente a governar o espírito confuso. Com os olhos perdidos no horizonte infinito entre nós, deixei-me levar pela falta de assunto. Passou a relatar, durante horas, seus planos do passado e anseios de um futuro vindouro. Frases vazias que se perdiam no espaço opaco. Senti-me estrangeiro em visita à terra natal. Palavras, emoções e o silêncio quebrados pela sua falsa retórica e antigas chagas. Com um punhal, cada verbo saído de sua boca me feria a alma.
Depois de me contar sobre seus amores, alegou que estava tarde e se despediu com um abraço sem graça, sem vontade, quase que maquinalmente. Foi. Eu iniciei uma caminhada sem rumo pela noite fria, perdido em labirintos sem cor, afeto ou esperança. Caos pelas alamedas escuras da vida. Olhava as pessoas que circulavam ao redor e ouvia suas conversas na vá esperança de um novo começo. Agia como se o que machucava em meu âmago era a mesma dor compartilhada nos quatro cantos do mundo. Egoísta nato, achava ser aquela a maior querela vivida. Bobagens. Apenas via as pessoas em suas rotinas maquinais: um branco liso e calmo. Aquilo me atormentava. Ninguém me perdoaria se visse o que meus olhos teimosamente captam. Era apenas um pedido de socorro. Verso do inverso que habitava meu peito.
Numa roda gigante, o mundo a girar dentro de mim. Escondia de meu inconsciente o medo da solidão. Ele se foi. Fiquei o fim de semana sozinho entre a autopiedade e o desespero. As horas que não passavam. Tudo era infinito e vazio sem sua companhia inexistente. Escrevia sem nexo ou ordem a caótica inexperiência de meus temores sombrios. No pensamento, via como um filme ou um sonho interminável sem final. Dragões desfilando em carros abertos com céu de brigadeiros e balões coloridos soltos no ar. Crianças sorrindo e saltando de euforia repentina. Seu sorriso que tanto me inspirava, agora, me dava calafrios. No trecho seguinte, estávamos em uma praia deserta, para se esconder da popularidade repentina. Refugia-se em um semi-anonimato dentro de mim. Diziam-me que ainda sou jovem para entender certas coisas: como a solidão medonha e o desespero em frente ao romance. Afinal, não queria ninguém a lhe esperar com os olhos fechados e a reclamar das tarefas diárias. Parei de sonhar com estrelas distantes. Não seria correto chamá-la de sonho esta forma sombria que se passou. No meio do lixo todo, procurei o verdadeiro amor que estava em mim. Não encontrei. O que os nossos sentidos captam não são legítimos? A dor é real? Ou nada sabe e omite o sentir. A realidade inexiste? Apenas sucumbe no porão da falta de memória. Como você me dói. Era a vida que seguia.
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II
Um dia desses, em que deviriam não existir, o dragão bateu bêbado à porta. Tropeçava entre as patas que mal conseguiam seguir em linha reta. Jogou todas as roupas no chão, revirou os móveis, rasgou papéis. Ofendeu-me. Disse palavras desprovidas e dormiu em meu colo. Com medo, levei-o para o banheiro e lavei seu rosto na pia; joguei-o embaixo do chuveiro frio. Despertou de um transe profundo. Disse-me que andava tão triste que nem conseguia mais chorar. Entregou-se aos vícios mesquinhos e sombrios.
Entre soluções e lamentações, falou que contava nos dedos quem sentiria a sua falta se um dia morresse. Desejava a morte em um novo apogeu. Ri para disfarçar os sentimentos de pena que se apossaram em mim. Ele sorriu ao entender o que meus olhos expressavam. Tocou minha face, pela primeira vez, e recitou que eu sentiria a minha ausência. Achei graça, senti-me novamente especial e querido. Com fúria no olhar, pronunciou, enquanto tocava Beatles ao fundo, que continuaria a mover a roda-gigante que o mantém vivo. Ali, senti meu coração partindo em milhões de fragmentos minúsculos. Poeiras sobre a eternidade.
Lágrimas escorreram pelos nossos rostos frios, enquanto tentava acalmá-lo. Dizia, sem convicção, que tudo ficaria bem. Sabíamos se tratar de uma ilusão passageira. Entre seus dentes cariados e o bafo de cachaça ordinária, ouvi de sua boca velada que eu temia mais o amor que a morte. Estava certo! Sem dúvida. Aquelas palavras desprovidas de carinho, emoção ou sentimentos me destruíram por completo. Chorei, uníssono, entre o banho e o trajeto de volta à cama. Desta vez, dormi no chão para melhor velar a dor do dragão. No fundo, eu sabia que ele tinha razão e que a felicidade não encontra morada na solidão.
No dia seguinte, ele se foi. Vi-me livre: preso em correntes de lágrimas e saudade. Fazia um frio abismal. Eu compreendi que teria que voltar ao que sempre fui todos os dias. Sozinho no quarto, longe do resto e da solidão de fora: retrocederia a uma criança assustada de antigamente. Aquele menino que nunca partiu e ainda joga os dados do destino, em uma espécie de brincadeira sem graça. Teias do destino; tudo ilusão. Senti vontade de desistir, entregar os pontos e perder-me em estradas de poeira e trajetos irregulares. É difícil aprisionar os que têm asas e deseja devorar o mundo. Por quase um segundo, desejei o fim repentino, outra volta dos ponteiros para uma rodada oportuna. A vida e seus mistérios. Seguinte depois, senti a saudade devorar-me por dentro. Força estranha que move o contraditório instinto e escancara a dor no ponto mais sensível. Mapa ao acaso? Caminhos que não levam a lugar algum? Às vezes assim; outras, indefinidamente: você?
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III
Os dragões detestam o que não é belo. Por isso, toda noite enfeitava-me na esperança bucólica de te ver voltar para meus braços cansados. Entre copos de bebidas e a solidão de amigos, fui, lentamente, desistindo de seu regresso. Na sombra do copo, no alto da noite, no frio das metrópoles, eu quis esquecer do que não saia de minha cabeça. Por que se foi? Não sabia o que te fez perde-se de mim. O que mais doía na alma era compreender o motivo de ter me escolhido, entregado-se e dias depois, desistido. Quis perder as cores, os gostos, tudo que um dia me trazia sensação boa. Distrações que me trouxeram paz nestes últimos dias sagrados. Segurei-me o que pude. Explodi em choro compulsivo. Não via as semanas que passaram velozmente. Os cabelos que caiam na mesma proporções que as folhas do calendário. Entreguei-me aos vícios pequenos e aos prazeres solitários. Raiava o sol ao horizonte, mas meus olhos corrompidos não enxergavam a clarividência. Via apenas seu leito vazio. Aquela falta me esgotava tanto.
Sem sono, rondando o quarto sombrio no avanço das horas, pegava-me a pensar em você. Perdi São Paulo, perdi Santo Antônio e os demais os santos católicos. Não me perdoo por perder São Paulo, Santo Antônio e os demais os santos; tampouco, a velhice de meus pais. O desespero matinal a atormentar na madrugada fria, interminável. Ouço nossas músicas e me dá uma saudade infernal de tudo que se foi com a sua ida. Onde está? Dentro de mim, uma vontade doentia de acabar com meus relatos e colocar um ponto final nessa dor insana que me alimentava. Deveria ter chorado a dor enorme de ter perdido São Paulo, Santo Antônio, os demais os santos e a velhice de meus pais. Recordo um último abraço quente entre a confusão de fora e dentro de meu casaco. Uma dança macabra, despedidas e adeus.
Duas da manhã e a ausência do dragão martela minha cabeça como a lembrar dos planos não concretizados e a incerteza do amanhã. Tudo passageiro aos olhos incertos e incrédulos. Recordo São Paulo, Santo Antônio, os demais os santos e a velhice de meus pais. Lembro-me de seu terço pendurado na pata dianteira esquerda, suas rezas e promessas não compridas. Sua vã filosofia barata e superstições tolas. Perdi tanto tempo, tanto plano e talvez tenha perdido você. Deixei abafados os resquícios de palavras soltas no ar. A trajetória e velocidade da queda livre são incontroláveis. Enquanto você preparava o veneno mortal, temo com sofreguidão a taça fatal que me contempla. Sobre a mesa, o resumo imperfeito de nossos relatos. Cabeças ao vento e o destino que se despede sobre os mares.
Olho para o relógio no instante que encho meu copo com mais uma dose de um destilado ordinário. Pesa na cabeça o excessivo abuso de álcool comprado pelo menor preço. Encaro as minhas poucas fotos espalhadas pelo corredor que me conduz a outro copo; passam-me os anos aos pares em frações de segundos. Monto na memória os momentos em que não estivemos juntos: sua ausência apaga a última chama ainda vida em meu coração.
Camas repartidas, sentimentos confusos. Era a repetição de cenas jamais captadas pela retinas cansadas. Volto a sentir falta do que nunca possui. O gosto amargo do destilado ordinário fede em minha derme. Sinto uma violenta força empurrando meu corpo ao chão. Deitado, peço para reencontrar-me com São Paulo, Santo Antônio e os demais cristãos de devoção de minha mãe. Fé perdia a cada dessabor. Tento relembrar a velhice de meus pais e me acho perdido na solidão das grandes metrópoles. Por que partiu se permanece em mim? Como explicar as ondas que controlam os sentimentos impuros? Voltas completas de um círculo vicioso ilógico. Perdido sobre os trilhos do caótico medo, sinto envelhecendo com a mesma velocidade de meus pais. À porta, despedindo-se de mim, São Paulo e Santo Antônio apressam-se para não perderem o trem, que partirá em breve. Fiquei.
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IV
Ele voltou. Relatou seus dias de glória e aventuras. Abraçou-me como nunca, com lágrimas de sangue na boca, disse que sentiu saudade. Prometeu nunca mais partir. Sorri, virei a cabeça: sabia que era mais uma de suas peças diabólicas. E eu cairia nas suas armadilhas pequenas. Minha carência e insegurança fizeram que o recebesse de volta, com as portas abertas e o coração em prantos. Somente quem amou consegue entender a dor cicatrizante no peito e as marcas de outrora.
Em uma noite em que o vinho e a música conduziram o destino, o dragão me disse que era de Virgem e tinha a lua em Leão. Retribui falando que era de Peixes, ascendente em Sagitário e lua em Júpiter. Falamos de filmes, livros e poemas. Listamos os melhores discos da história, discutimos Sartre, Borges e Caio Fernando Abreu. Recitamos poemas, lembramos de cenas e filmes clássicos. Disse que sentia minha falta e gostava de meu abraço. Olhamos o nascer do sol em uma brecha ínfima entre a janela e o prédio ao lado. A luz raiava entre os pequenos espaços de nossos corpos nus. Para matar a saudade das datas esquecidas, o dragão pegou um violão e entoou algumas músicas. Leros e Boleros. Tangos e outras delícias. As harmonias trouxeram paz ao meu peito, que dias antes fora desfeito. Baixinho, ao fundo, o som da cidade acordando enquanto tratávamos de sonhar na manhã fria de inverno. A paz regressava ao peito cansado de esperar em vão. Era fatal.
De forma doce e angelical, perguntou se tentei me matar alguma vez. Desviei o olhar. Respirei fundo e tentei imaginar sua reação se soubesse a verdade. Cabisbaixo, neguei sem força ou convicção. Mantive os olhos fixos ao chão; lembrei de uma velha canção que minha avó cantava; e das novenas que minha mãe fazia; o cheiro de cigarro na camisa de meu pai, velhas brincadeiras da infância e as peças de meus irmãos mais velhos. Memórias que perderia se tivesse puxado o gatilho fatal que sempre estive a um fio de disparar. Arrependi-me de meus pecados. Senti o gosto ocre de sangue na boca. O brilho do sol que entrava pela persiana semi-aberta iluminava minha compulsiva dor. Embora sombria, era uma cena de bela plástica.
Com uma de suas patas, levantou meu rosto, viu minhas lágrimas e compreendeu o porquê de mentira que lhe contara. A verdade fere mais que o amor. Calou-se. Vi em seus olhos o desgosto, a apatia e cólera de antigamente. Já provara seu gosto amargo. Naquele instante, compreendi que o perdera em definitivo. Ele sentenciou sua partida sem ao menos esboçar uma desculpa. Na parede, um retrato de minha mãe redobrava o silêncio abafado pelas suas asas. Talvez por medo, talvez por piedade, voou para longe. Olhei o horizonte perdido quando acordei na tarde seguinte. Sabia que nunca mais voltaria.
Rasguei cartas, bilhetes com telefones e nomes escrito em capas de livros e em versos e prosas. Joguei fora relatos intermináveis e quadros em branco. Desejei sua volta, seu perfume que me provocava alergia, sua cólera que me consumia e palavras vazias contando-me o tédio de seus dias…
Deixei a saudade consumir como chaga a queimar a imensa dor que se alastrava dentro do meu descompassado coração sem cor, credo e esperança. Fecho os olhos e ouço o leve som do bater de asas e a dor que me restou depois de sua partida. Como uma orquestra dodecafônica e sinistra, o silêncio de meu quarto trouxe-me angustia, dor e incertezas jamais entendidas. Tentei livrar-me de meus pecados e expulsar as feridas da alma. Recomposição em estado bruto. Passei dias caminhando no escuro e com palavras sem sentimento na boca. Ideias confusas e interrogações. Pregava o fim da vida; o apocalipse repentino: a redenção de pecados não cometidos. Imaginei que o mundo deveria estar ao contrário. Lobo solitário e egoísta, acreditava ser o único na direção certa. Tolo engano dos descontentes.
As folhas do calendário continuavam a cair. As horas não tinham sabor, graça ou cor. Tudo disforme. Preenchia-me com a pequenez dos prazeres burgueses. Era um sábado à noite. Depois de sessão de cinema sem graça e café amargo, senti um velho perfume. Aquele aroma nunca passaria por mim sem trazer estragos profundos. A rinite me atacou novamente como nas melhores datas da memória seletiva quase amarelada, esquecida. Reconhecera aquele cheiro e aquela alergia de outras estações, outros carnavais, outras ilusões, outras fantasias não vividas. Um novo capítulo ou o epílogo? Encontrei um dragão sozinho. Sorri. Retribuiu. Talvez por ser inverno, levei-o comigo. Sabia desde o princípio do desfecho que se desenhara. Os dragões não mais existem.